Gps Inesquecíveis                                                       


Nervos de Aço

Por Clackson

Os recentes acontecimentos na vida política brasileira trouxeram a tona, de uma forma inusitada, a música “Nervos de Aço”, de autoria de Lupicínio Rodrigues, sendo utilizada nesse episódio como uma metáfora para aqueles que, sob forte carga nervosa e emocional, conseguem manter com frieza o controle absoluto da situação, e o devido equilíbrio. Não há quem perturbe àquele que têm os “nervos de aço”.  

São extremamente raras as pessoas que conseguem manter o estado emocional em uma situação de alta tensão nervosa.

Imagine, caro leitor, você tendo a responsabilidade de cobrar um pênalti contra a Argentina, aos 45 minutos do segundo tempo, numa final de Copa do Mundo, e o placar estando um à zero para os portenhos e o Brasil com o empate leva o título mundial.  

Certamente você já está nervoso só em pensar nessa situação, o que dirá o verdadeiro jogador que vai cobrar a penalidade?

Como toda regra tem sua exceção, sempre surge aquele jogador que ao bater o pênalti, o faz com tanta tranqüilidade que aumenta mais ainda a tensão de quem assiste ao jogo, ou seja, a calma dele aumenta o nosso nervosismo.  

No universo turfista não há espaço para alguém com nervos de aço devido à própria dinâmica do esporte, que aumenta o estado emocional de quem quer que seja.

Não é exagero dizer que, dependendo do páreo, até um morto ressuscitaria só de ouvir o clamor dos turfistas torcendo por seu cavalo favorito!!!  

Se nas arquibancadas nós quase morremos do coração, como se sentem aqueles que são os atores diretos do espetáculo; os jockeys ?

Imaginemos um jockey no GP São Paulo, montando um favorito, hipódromo lotado, e todas atenções no hipódromo voltadas para ele e ao cavalo. Ele, comparativamente, é o jogador da cobrança do pênalti da Copa do Mundo descrita acima.

É quase humanamente impossível alguém ficar impassível diante de uma situação dessas.  

Em Cidade Jardim, em particular, poucos foram os jockeys que conseguiram manter a frieza nas corridas, e muitos páreos foram perdidos por causa disso, mas um jockey , em especial, era a tradução exata da expressão “nervos de aço”.  

Seu percurso e tocada, aliada a uma extravagante calma quando em cima de um cavalo, desesperava a todos que não conseguiam compreender como alguém disputando páreos de tanta importância tinha uma temperatura de um iceberg?  

Como se não bastasse, o páreo que acredito que tenha sido o maior de sua vida, ele exibiu uma dose de frieza que ainda permanece viva em minha memória. Vamos logo acabar com o mistério senão esse artigo vai produzir mais tensão ainda.  

O jockey com esses “nervos” não é ninguém menos que um dos mais consagrados jockeys da história do turfe brasileiro, o gaúcho Ivan Quintana, o fantasma do disco final !!!  

Jockey de elevados recursos técnicos, suas corridas podem ser consideradas como aulas ao jockeys de hoje, devido a sua inteligência e energia em exigir e obter o máximo rendimento do cavalo durante uma corrida.

Não pense leitor que esse rendimento significava uso do chicote, pois o Quintana era um jockey de uma estatura elevada para o padrão comum da profissão, e sua forma de estribar lembrava, e muito, a posição de um jockey de freio, mas quando ele “deitava” no cavalo e o tocava, o turfista já poderia se dirigir para o guichê receber suas poules, porque ninguém, ninguém mesmo, conseguia chegar na frente dele.  

São antológicas suas chegadas na Taça de Prata com Full Love, (foi ultrapassado por dois cavalos nos últimos 50 metros e mesmo assim levantou o páreo), com o Very Lazy no Grande Prêmio Consagração (leia a descrição desse páreo no arquivo deste site), e o mais eletrizante, a vitória com Oferu Bird na Copa ANPC de 1988, onde o Quintana, entre o Corto Maltese ( C.Canuto) e Radnage ( F. Pereira Filho), livrou pequeníssima vantagem e, por muito pouco, não se deu o primeiro tríplice empate em Cidade Jardim. O Oferu Bird após cruzar o disco teve uma crise de anorexia (falta de oxigenação). Os turfistas já estavam com a falta de ar devido à chegada!!!  

O páreo escolhido para homenagear esse fantástico bridão será, no meu modo de entender, a mais marcante vitória da sua carreira, o GP São Paulo de 1.991, onde montando a lenda Thignon Lafré, do Haras Malurica, Ivan Quintana assombrou Cidade Jardim com uma demonstração de alta categoria e frieza.  

Thignon Lafré e I.Quintana - Craques em ação !!!

Antes de discorrermos sobre o páreo, cabe aqui uma breve recordação sobre o ocorrido com o cavalo do Haras Malurica no início daquele ano. Em janeiro fora corrido o GP Cinqüentenário do Jockey Club e Thignon Lafré vencera o páreo, mas a Comissão de Corridas desclassificou-o no exame anti- doping devido ao fato de ter sido medicado na semana da corrida.  

O seu treinador, Altair Oliveira foi suspenso por seis meses e seu substituto foi o Amazílio Magalhães Filho.  Aqui cabe um esclarecimento para quem não conhece o turfe se São Paulo. O treinador Altair Oliveira é uma dos mais reputados e ilibados profissionais de turfe de São Paulo e, o caso da medicação de Thignon Lafré, não deve ser entendida como uma forma de melhorar a performance do cavalo. Thignon Lafré era craque e o GP São Paulo mostrou isso de forma categórica.

Em suma, Thignon Lafré correria o São Paulo com aquele sabor de desforra.  

O campo do GP São Paulo era pura categoria, pois vejam os competidores: Falcon Jet, Luzibal, Man Ray, Ricoxino, Flying Finn, Napolitain, Tekrezo, Czar Grandi, Tobrouk, High Desert, Katan, Sonetikino.  

Com um público estimado de 25 mil pessoas foram abertas as portinholas do starting gate, com Ricoxino (L.C. Silva) e Tekrezo (L. Duarte) assumindo as primeiras posições tendo Falcon Jet (J. Ricardo) em terceiro, e assim permanecem até o disco em sua primeira passagem.    

Na curva da direita os ponteiros abrem uma vantagem um pouco maior e Flying Finn, com o Juvenal, toma o quarto lugar como que a acompanhar o Falcon Jet.

Man Ray( N.Souza)  e Luzibal ( A.Barroso)  vinham a seguir e o Thignon Lafré ficava em oitavo lugar.

No começo da reta oposta o Ricoxino e Tekrezo ainda mantinham a ponta, mas o Juvenal junto com o J. Ricardo percebem que devem ficar mais próximos dos ponteiros e já no meio da reta  começam a encostar, sendo que o Juvenal passa pelo Falcon Jet e vai ao encalço do Ricoxino e o Ricardo, espertamente, deixa o Falcon Jet em terceiro.   

O Quintana nessa altura permanecia no bloco de trás, ainda em oitavo, mas quem conhece a categoria do Quintana podia ficar seguro que, se ele estava ali é por que ali devia estar, mas quem não conhece seu estilo já começava a se preocupar.

Muito provavelmente ele deve ter experimentado o cavalo já nessa fase do percurso, e percebido que o Thignon Lafré estava inteirinho. È difícil manter a calma sentindo que o cavalo está só aguardando a hora de “voar” e quem deveria dar essa partida nunca vencera aquele páreo.  

No começo da curva, o Juvenal passa pelo Tekrezo e vai logo se aproximando do Ricoxino, porém esse avanço foi fatal para qualquer pretensão do Flying Finn como se verá adiante. O Ricardo só observava o melhor momento para atacar o Flying Finn, pois o Ricoxino já dava mostras que sua tarefa se encerraria logo mais.  

O Barroso, com o Luzibal, vendo aquele cenário mais do que depressa avançou e ficou atrás do Ricardo como a sinalizar que “na reta a gente se encontra”. A essa altura o Quintana começava a progredir, matematicamente, ganhando posições por dentro, contundo sem dar sinais que estaria na briga. Para um turfista que acompanha corridas e percursos sabe perfeitamente que o avanço na curva por dentro só significa alguma coisa se, primeiro, o cavalo não sofrer qualquer tipo de “caixote” e segundo, se tiver ação para atropelar, ou por dentro ou por fora, com a conseqüente perda de terreno.  

Imagine você leitor, o Ivan Quintana que nunca havia vencido um GP São Paulo em toda sua exuberante carreira de títulos, montando um dos favoritos desse GP, mantêm o cavalo por dentro, tendo à sua frente Flying Finn, Falcon Jet, Luzibal e sem uma definição clara de quem seria seu adversário direto.  

Fosse outro o jockey de Thignon Lafré e vendo o avanço do Barroso com o Luzibal, certamente já daria uma partida no cavalo para ficar, no mínimo, próximo a este, todavia quem montava o Thignon Lafré tinha nervos de aço e independente do que acontecia com os ponteiros, o jockey do sangue de gelo, fazia a sua corrida, não se importando com os outros.

O mais comum nessa hora para um mortal comum é ter um batimento cardíaco de 140 batimentos por minuto, suar frio e as mãos (rédeas) tremerem, porém o Quintana era exatamente o oposto a isso.  

Na entrada da reta o Flying Finn assume a ponta, mas de forma efêmera logo deu sinais de cansaço e o Falcon Jet, corrido a dedo pelo Ricardo assume a ponta com Luzibal vindo ao seu encalço.  

Como a sentir a máquina que montava, o jockey dos nervos de aço, ao final da curva vai tirando o Thignon Lafré para fora, para fugir de qualquer tipo de contratempo, e inicia uma arrancada que será lembrada pelos próximos mil anos!!!  

O Barroso tocava forte do Luzibal para que este se aproximasse do Falcon Jet, e o Jorge Ricardo, outro jockey que não havia vencido o GP São Paulo, pelo contrário corria com muita desenvoltura e seguia firme para o disco. .

A máquina Thignon Lafré , descontou muito a diferença dos ponteiros e, quase voando, foi  para cima do Luzibal. Nos 300 metros finais ele passa pelo Luzibal  e foi ao encalço do Falcon Jet.

O hipódromo era uma praça de guerra devido aos vários partidários dos jockeys ponteiros. Muitos gritavam para o Ricardo conseguir manter a ponta, outros, torcedores fanáticos do Barroso, torciam por uma reacionada mágica do “Feiticeiro”, e os “quintanistas” estavam morrendo do coração devido ainda faltarem trezentos metros para o disco.

O Falcon Jet, ao perceber o avanço do Thignon Lafré esboçava uma reação. Estaria essa reação nos planos do Ivan Quintana ?  

O efeito dos nervos de aço estava consolidado, pois um super cavalo como Thignon Lafré (Falcon Jet era outro super cavalo também), corrido de uma forma excessivamente calma, fria e matemática estava “voando” e descontando  muito a diferença, todavia havia a expectativa: Será que vai dar ?. Acho que o único que acreditou nisso foi o Quintana, pois sabia exatamente o que estava montando.

Dos trezentos aos duzentos metros o Quintana emparelhou e conseguiu livrar um corpo de vantagem e parte do hipódromo já estava desabando devido aos gritos de alegria e emoção, que só o turfe pode propiciar, mas faltavam ainda duzentos metros!!!

O Falcon Jet por dentro não se entregava, o Quintana por fora com um corpo de vantagem, ambos os jockeys ansiosos por vencerem aquele histórico e mítico Grande Prêmio e colocarem seus nomes na galeria que contém Luiz Rigoni, Pierre Vaz, Antonio Bolino, Dendico Garcia, Albenzio Barroso, Gabriel Menezes, Juvenal Machado da Silva, Gonçalino Feijó de Almeida e tantos outros mestres das rédeas.  

Nos cem metros finais a diferença se manteve e parecia que finalmente um dos mais frios, calculista e, extremamente eficiente, jockey do turfe brasileiro, iria levantar seu primeiro Grande Prêmio São Paulo.  

Para o assombro geral do público, quando Thignon Lafré estava praticamente com o GP São Paulo na mão, e muito próximo ao disco, aconteceu uma cena que jamais fora vista no hipódromo de Cidade Jardim.  Em frações de segundo tudo o que foi escrito aqui sobre o jockey dos nervos de aço caiu por terra, pois o Ivan Quintana levantou-se do selim, e com o chicote no ar explodiu em emoção e alegria, como a agradecer por tudo aquilo que os longos segundos o estavam separando da glória.

Ivan Quintana cruza o disco e seu gesto de emoção comoveu os sentimentos gerais do público, que compreendeu que ali se consagrava por completo um dos maiores nomes da história do turfe e só mesmo o turfe poderia derreter os nervos de aço de qualquer um. Mesmo de um Ivan Quintana !!!  

Para se registrar o ineditismo do comportamento do vitorioso jockey, ele ainda jogou o boné e o chicote para o público, durante a volta para a repesagem. Se alguém apostasse que um dia ele faria isso, certamente essa seria uma poule de mais de mil!!!

O mito dos nervos de aço permaneceria por muitos anos até a sua antecipada aposentadoria, mas naquele momento mágico, Ivan Quintana ou qualquer outro ser humano faria o mesmo.  

Um percurso que pode ser considerado como lendário, uma tocada que era sua marca registrada e um GP completando uma vitoriosa carreira (ele venceu quatro Derbies Paulista, um GP Brasil, várias Taças de Prata, estatísticas de vitórias além de inúmeras provas de grupo), enfim um jockey completo.  

Saibam turfistas, que naquela tarde de domingo de maio de 1991, Cidade Jardim presenciou uma das maiores exibições que um jockey poderia apresentar em termos de técnica, frieza e cálculo e que só o turfe pode derreter quem têm os nervos de aço.  

A foto abaixo é registra o exato momento em que o Thignon Lafré passou pelo Luzibal e emparelha com o Falcon Jet, com o Quintana exigindo com a canhota o seu dirigido.  

Thignon Lafré (4) com o estupendo I.Quintana

Essa foto abaixo, é o flagrante da explosão de alegria do Ivan Quintana com seus nervos de aço já devidamente derretidos.  

I.Quintana vibra com Thignon Lafré 

Home